terça-feira, 25 de julho de 2017

O que eu aprendi sendo escritor?

Hoje, 25, aparenta ser um dia muito especial àqueles que sofrem uma terrível insônia e uma inspiração que surge nos lugares menos esperados — seja no ônibus da volta para casa, seja no chuveiro, essa “dita” sempre aparece de surpresa.
Mais um dia do escritor que acabo esquecendo por pura e simplesmente rotina de uma cidade grande-mas-que-tá-ficando-pequena que é São Paulo. Era mais ou menos dezoito horas desta tarde, quando recebo uma mensagem simples, daquelas que combinam com a rapidez que as coisas são ultimamente. Olho uma, duas vezes e solto a mais famosa onomatopeia de minha geração: PUTS.
Eu poderia chegar aqui e usar e abusar de eufemismos, mas, infelizmente (ou feliz) foi exatamente assim que aconteceu. Datas são muito importantes. Fazem-nos lembrar e parar para refletir sobre o que de fato está sendo comemorado. O problema foi eu nunca ter tirado uma longa tarde para formular e responder a pergunta que poderia ser retórica.
O que eu aprendi sendo escritor?
A verdade é que continuo não sabendo e em hipótese alguma fico preocupado com isso. Durante esse tempo — o que é tempo, atualmente? — que tirei a senhora coragem do baú e comecei a escrever, conheci e passei a admirar muita gente que hoje nem está por aqui para tomar aquele café literário.
Foi com Caio Fernando Abreu que aprendi a paixão que é escrever um conto. Com suas histórias em tom melancólico, comecei a arriscar alguns textos. Alguns ficaram consideravelmente bons. Outros tratei de rasgar no momento final de sua leitura.


Levei Caio F. na mochila, no bolso, durante os primeiros anos de escritor. Acredito que nem eu sabia ao certo o que estava fazendo, mas eu gostava do resultado. A excitação ao finalizar um texto era algo descomunal. Como tudo estava dando certo, ora, continuei então.
Viajei com Caio em seus escritos. Acompanhei cada história escrita em “O ovo apunhalado” , “Fragmentos”, surpreendi-me com a história de “Onde andará Dulce Veiga” e perdi-me intensamente em sua biografia “Para Sempre Teu: Caio F.”, por Paula Dip, uma grande escritora a quem tive o prestígio de conhecer pessoalmente ano passado no monólogo Amarelo Distante, de Kiko Rieser.
Nossa viagem estava ótima, como sempre esteve, mas Caio F. ganha uma concorrência pela tão disputada cabeceira do meu quarto. As “loucuras” escritas por Clarice Lispector conquistavam cada vez mais esse escritor que faz uma tremenda volta para explicar uma pergunta tão sucinta. Clarice ganhou-me ao escrever “A hora da estrela” e dar vida a Macabéa.
Após ganhar-me com seus “delírios”, conquistou-me com suas entrevistas que fez como jornalista. Clarice era capaz de criar todo um ambiente, personagens, ações, cheiros, sentimentos, enquanto entrevistava seus convidados. Tratava-os muito bem, aparentava até mesmo um ar dionisíaco, metaforicamente falando. Como encantava…
De fato, o que eu mais aprendi sendo escritor foi ter o respeito e paixão por cada um que preencheu páginas em branco com histórias intermináveis, cada um que batalhou e batalha para ser reconhecido em um país que não valoriza a leitura. O que eu mais aprendi sendo escritor foi ter a perseverança de cada nome citado e tantos outros nomes colocá-los neste texto o deixaria interminável. Aprendi que ainda tenho tanta coisa a aprender por esse universo literário que uma vida só não basta.
Parabéns a cada escritor existente nesse Brasil nosso, nesse mundo nosso. Que possamos dar origens a tantas novas histórias. Que sejamos eternos nessa imensidão de parágrafos e frases ambíguas.
Sobre o que vai escrever hoje?

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Procura-se




Aquele papo de carnaval no vagão do acaso
Um acaso tão bom

Aquela fantasia mofada coberta de gliter
Que vence só em 2018

Aquela conversa de que tu falou
Que as pessoas não se abandonam, só dizem até mais ver

Aquela foto pregada no mural 
Bem bagunçado, por sinal

Mais palavras para dizer a falta que faz
Tudo que já foi e fez

Você

segunda-feira, 17 de julho de 2017

ELA

Eu gosto quando ela dorme aqui. Gosto de sentir aquele abraço, aquele carinho que me faz tão bem em tão pouco tempo. Quando ela dorme aqui, toda aquela insônia acaba. O perfume dela fica em mim por completo.Preenche os cantos do meu apartamento, repousa em meu travesseiro e lá fica até o dia seguinte, em que o expediente recomeça.

Mas começa diferente, mais animado. A gente abre a janela e parece estar de cara com uma marchinha de carnaval. Dá vontade de sair pulando e jogar confete para todos os lados, gritar para todo mundo o quanto sou feliz e não sabia.

E a animação segue durante o dia inteiro. A marchinha parece não cansar, e eu também não. O sol de meio dia não castiga mais tanto. Agora comemora conosco.

Eu sei que o texto parece incompleto, mas é o que consigo contar no momento. Há outros sentimentos a serem contados, certamente. Mas como bom escritor que quero ser, resta-me fazer aquele suspense clichê na expectativa de mais um escrito como esse.

Mas gosto quando ela dorme aqui. Gosto quando ela me completa... disso não tenho dúvida.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Perda do Relógio



Não sei o certo um nome para culpar a terrível perda. Tentei Jaime, Daniel, Sara, nenhum bateu na porta de meu escritório para reclamar a respeito do acontecido. Tentei a velha Remington, mas a velha senhora só sabe datilografar.

Necessito de um culpado...

Na euforia literária de parecer um daqueles grandes escritores do Modernismo, o relógio enche a taça rachada com o melhor dos piores vinhos de botequim. Pede licença a todas as obras publicadas em mesas de bar e vira tudo de uma vez, cuidando-se para não cortar os finos ponteiros com o pedaço que falta na taça, agora suja com a quase-inexistente espuma da bebida fermentada.

Coisa de cinco minutos. O relógio bambeia na cadeira, esbarra no digital que bebe um refinado espumante. Tenta apressadamente pedir desculpas, mas só sabe apontar que horas são- e nem isso conseguia fazer.
(São 22 ou 75 horas do noite-dia?)

O relógio decide tomar um ar do lado de fora do botequim. Tenta se equilibrar pelas duas finas tiras de couro que usa para se fixar no pulso alheio. Tudo o que consegue é uma sequência de zigue-zagues tonteante.

Passou em frente o metrô Vila Mariana, mas decidiu não entrar. A viagem poderia enjoá-lo e botar os números para fora. Ficou observando os que passavam. Como eram diferentes. Usavam roupas, pelos, seios, ódio, pessoas, barba, sapatos cafonas, roupas transparentes, alianças, desenhos pelo corpo com significados, jornal embaixo do braço com a página de signos rabiscada em confusas contas de matemática e coordenadas geográficas.

O não-sóbrio relógio se divertia com todo aquele espetáculo de horrores, como ria. Não se aguentou, cambaleou para escada e vomitou os numerais ímpares. Agora só servia para quem fosse supersticioso... que pena.

O dia estava perto de chegar. O ponteiro dos minutos pesava a cada movimento - e não era por causa do fuso horário.

No fim da escada, algo chamou-lhe a atenção. A cada segundo um barulho familiar. Era um tic para lá, tac para cá e o barulho aumentava a cada segundo.

Atordoado, mas com um resquício de consciência, o relógio se levanta da escada. Que imagem era aquela...

Segurando no corrimão, um relógio com os braços nus, decote à altura, rosto iluminado, com lantejoulas de valor pregadas nas bordas. Talvez era esse o jeito de um relógio seduzir alguém, pois o nosso amigo fermentado aparentava grande excitação.

Mas como um objeto indicativo de horas também pode sentir o desespero, a ilusão, o pavor em amar alguém? Parecia ser, de fato, a criação mais bem criada pelo homem. Infelizmente, com um defeito conhecido há tempos e outras histórias improvisadas: a cópia humana.

O relógio de pulso supersticioso, tenta levantar, mas tomba no áspero degrau. Enfia na cabeça que deve persistir. Após mais três, consegue permanecer semi-ereto. Inicia sua descida.

Observa atentamente a placa que diz para manter-se com as mãos no corredor e permanecer à direita. Murmura algo semelhante a um palavrão inventado na hora. Como pode manter as mãos se só possui duas finas tiras de couro que nem se dão o crédito de serem nomeadas mãos?

Passo, tropeço, passo, tropeço, passo, tropeço, tropeço, tropeço, tropeço, chão...

Espatifado no piso emborrachado. Tenta levantar seu corpo, mas ali resta somente cacos. Pede ajuda para o outro relógio. Sem resposta. Teria sido uma miragem alcoólica? Talvez...

Passa a não sentir o corpo, perde completamente seus ponteiros. De nada servia.

O Tic Tac ficou paralisado em Tac. Pela primeira vez na história, um relógio não saberia informar as horas ao ser consultado.

Silêncio, passos...

Consegue identificar passos se aproximando. Alguém estava atrasado para o serviço. Que horas seriam? 5h30? 6h00?

Talvez esse alguém poderia socorrer o nosso pseudo-protagonista. Passos mais próximos, seguidos de um silêncio utópico em uma cidade como São Paulo.

Agora, salve-me - fez uma reza de bebum. Sente então algo levantando-o. O chão emborrachado frio dava lugar a um piso quente e macio. Como se estivesse na palma de uma mão humana.

Na indecisão de ser usado ou socorrido, o relógio variava suas ideias, repetindo coisas sem nexo. Salve-me, repetiu.

Num rápido momento, as mãos acolhedoras e quentes deram lugar a um lugar frio e apertado. O relógio cada vez mais ia ficando sem espaço, cada vez mais sem vida. Um, dois, três segundos a mais. Foi parar na lixeira mais próxima que Rogério encontrou, afinal, aqueles cacos de vidro espalhados pelo chão poderiam machucar alguém, assim como todo o resto do trambolho. Rogério zelou pelo bem-estar dos muitos que passam pelos finos corredores do Metrô.

Desde então, o relógio nunca mais foi visto. Perguntei discretamente a algumas pessoas da cidade, mas ninguém se importa com um relógio-bêbado-espatifado-perdido.
Se nem ele se importava consigo, respondeu uma senhora de 67 anos.

Continuo na fervorosa busca.





sexta-feira, 2 de junho de 2017

Luto aos finados


Hoje é para ser um dia excelente. Sexta-Feira!
Pensei em comprar alguns fogos de artifícios, mas parei no meio do raciocínio. Primeiro que a loja de fogos perto de casa não abre de Sexta, segundo que sinto uma constante Segunda-Feira em mim. Cabe em mim somente o profundo luto.
Nunca o deixei entrar para tomar um café, nem mesmo sabia sua aparência. São só 4 letras... não da nem tempo da xícara esfriar.
Luto aos finados porque seria incomum estar aos vivos. Sinto muito pela descoberta que deveria estar coberta. Parte o coração ao ouvir aquela mistura de Bossa com um outro tipo por aí e sair do trabalho mais cedo, tomando bronca do chefe, quase ser atropelado, perder aquela paixão de Metrô, perceber que está na hora de fazer a barba, perceber que há tempos não escreve nem um versinho na capa do bloco de notas e ao chegar no centro da cidade para comprar loucamente dois ingressos (um para o escritor e o outro para qualquer um que sente do meu lado no banco do ônibus) descobrir que a banda deixou de existir faz um bocado de tempo.
Olhei para o rapaz que estava na cabine apertada e disse como assim não existe? Ta ouvindo esse refrão que dá vontade de congelar e gravar no vinil para deixar tocando todas as tardes na vitrola? Ta ouvindo essa voz vivíssima? Por que mentes?
Não tive respostas, só a portinha da cabine fechando na minha cara.
Como uma banda que fala de Metrô, Futebol e Marinês não existe mais? Onde foi o enterro? Que enterrou?
Por este motivo... sem fogos e alegria de Sexta

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Entre Cartola e Meio Fio - O primeiro conto

Talvez fosse a tarde mais quente de São Paulo, pensou Marcelo. Como

estava enganado! Não passara de uma preparação para a próxima semana... e

que semana!

Na volta para casa, queixava-se da indecisão que é São Paulo.

- Frio, Calor, Frio, Calor, assim não dá Cauê!

- Calma cara! Vi na TV que fará ainda mais calor. Se eu fosse você,

guardava essa raiva contra o mundo para depois. Ainda são 18:03, dá tempo

de ir até a casa da Manu jogar baralho cigano.

- Porra Cauê. Não fode! Você ainda acredita nessas coisas?

- Não sei se acredito, Marcelo. A Manu disse que um dia vai me explicar

como funciona. Bate aquela curiosidade.

- Agora que não vou mesmo. Enquanto a Manu joga e você fica babando

por ela eu faço o que? Fico assistindo a tudo? Claro que não né.

- Bom, já que você não vai, eu vou. Nos vemos amanhã então, Marcelo.

Cauê quase nunca fora amigo de Marcelo. Passaram a conversar mais

depois que o Ensino Médio acabou, por pura coincidência. Até hoje se

lembrava daquele dia. Caía uma chuva daquelas lá pelos lados da Praça da

República. Marcelo tivera sorte, pois estava dobrando a Rua do Arouche,

quando ela caiu. Cauê ainda estava na 24 de Maio.

E aquele corre daqui, corre de lá começou. Ambos iam para o Metrô,

uma tarefa fácil, se não fosse o mundo caindo a seus pés. Marcelo estava mais

perto e sem sombra de dúvidas chegaria primeiro, mas o trânsito de guarda-

chuvas o encurralou sem ter para onde sair. Tentou apressar o pessoal que

vinha pela frente, mas uma senhora acabara de prender o pé em uma vala e

todos faziam uma roda para ajudá-la a desenroscar o pé e muitos curiosos

observavam e até mesmo esqueciam-se da chuva que caía em São Paulo e a

ambulância não vinha e aquilo estava estressando Marcelo – e quanto e -, que

gritou para o rapaz da frente abrir passagem, mas fora abafado pelo som de

um trovão – e que trovão.

Cauê, que estava mais distante do Metrô, deu sorte e não encontrou

nenhum guarda-chuva para pará-lo, mas freou o passo quando alguma coisa

puxou o bolso rasgado da calça para baixo. Virou-se assustado, mas logo

manteve a calma ao perceber que era um dos muitos moradores de rua da

cidade.

Mesmo com a chuva engrossando, o homem encarava Cauê. Tinha

baixa estatura, pensou, mas talvez só estivesse bem agachado. Havia mais

barba do que rosto naquela face. O que diferenciava um do outro eram suas

olheiras e, mais profundo ainda, um par de olhos castanho-mel. Usava trapos

de roupa e um grande cobertor preto para se proteger da chuva e do frio.

Queria dizer algo...

- Me dá uma coisa para comer aí?

A chuva estava tão forte que Cauê não conseguira entender o que o

homem dissera.

- Comer...alguma coisa – repetiu, talvez percebendo que não fora

ouvido.

Mesmo com aquela chuva, Cauê encostou seu guarda-chuva - que não

estava lá essas coisas – no chão e procurou em sua bolsa toda ensopada por

alguma comida para dar àquele homem.

- Desculpe – gritou – mas não tenho nada, só estas moedas de

cinquenta centavos.

Ao contrário do que Cauê pensou, o homem não parecia chateado.

Levantou-se um pouco mais e tirou do seu montinho de trapos um velho

chapéu, mais ou menos parecido com uma cartola.

- Não precisa se desculpar. Fico feliz com o agrado. Vamos, bote aqui

dentro.

Cauê estava aproximando a mão com três moedas de três centavos

quando o homem retirou rapidamente.

- Ora essa, mas sem pensar em nada?

- Como assim?

- Não coloque por colocar! Pense pelo menos em algo, cacete!

Cauê novamente não entendeu o que aquele homem estava querendo

dizer a ele. Não conseguia ser criativo assim do nada para pensar em algo,

principalmente debaixo daquela chuva que ainda caía... e como caía. Pensou

em algo qualquer, “ah, não sei, o tempo de escola, os amigos, essas coisas”.

Percebendo a face pensante de Cauê, o homem tornou a aproximar a

cartola para perto dele. Cauê dessa vez foi mais rápido, temendo estar sendo

zombado por um morador de rua, que provavelmente estava bêbado, vivendo

uma de suas alucinações em meio a um temporal.

- Muito bem! – o homem fez um curto gesto agradecendo.

Cauê percebeu que estava atraso no momento em que olhou seu

relógio. Pegou rapidamente seu guarda-chuva e saiu sem se despedir. Podia

estar delirando, tomara muita chuva, mas jurou ter ouvido um murmúrio do

homem que continuava agachado, mas que agora fazia barulho chacoalhando

as moedas que estavam em sua cartola.

- Diga a Marcelo para parar de ser tão filho da puta!

Só podia estar louco, pensou. Devia ter chutado um nome e coincidiu

com um velho amigo da escola que há tempos não dava as caras. “Marcelo,

onde anda Marcelo?”, pensou. Mesmo não fazendo parecer, no fundo Cauê

sabia exatamente o que o homem estava dizendo.

- Porra, é hoje que não chego nessa merda de Metrô – berrou alguém

que Cauê enroscara seu guarda-chuva sem perceber, estava tão pensativo.

- Desculpe, eu estava... – uma longa pausa se formou no meio de todo o

caos que é São Paulo.

- Cauê, quanto tempo!

Ainda sem saber bem o que fazer, Cauê desenroscou lentamente seu

guarda-chuva e abraçou seu antigo amigo da escola: Marcelo.

- É mesmo, quanto tempo!

- Está indo para onde? – Marcelo não tinha mudado muito do que Cauê

pensava ter mudado.

- Cara, tô indo pra casa. Preciso pegar o Metrô.

- Caralho, que sorte então. Eu estou indo para lá também. Na verdade,

eu já estaria em casa, mas essa bosta de chuva só está me atrasando. Chove,

para, chove, para. Assim não dá né? Para ajudar mais ainda, uma velha me

prende o pé em uma vala e todo mundo faz aquela roda imensa para ver o que

aconteceu. Alguém ali é medico por acaso? Claro que não! Enfim, como vai a

vida?

- Bom, agora eu estou trabalhando e...

- Entendi – rebate Marcelo, mostrando desinteresse - olha lá o Metrô.

Se corrermos, vamos conseguir pegá-lo.

- Pode ir, eu pego o próximo.

-Então tá, nos vemos um dia por aí ao acaso.

- Sim, sim – Cauê disse enquanto Marcelo corria todo encharcado em

direção ao Metrô.

E desde aquele dia, tivera a certeza de que o amigo não havia mudado

em nada.

Cauê já estava perto da casa de Manu, quando parou de pensar em

tudo que aconteceu e como reencontrou seu amigo Marcelo. Mais algumas

quadras e estaria lá. Como sempre, andava distraído e por isso não percebeu

quando pisou por acidente na mão de um homem que tentava pegar uma

bituca de cigarro do chão.

- Ai meu Deus, desculpe. Eu estava distraído e nem vi a sua mão no...

- Tá, tá, tá, chega!

Cauê então olhou para o dono da mão que acabara de pisar. Assustou-

se quando viu que ela pertencia a um homem de aparência horrível. Parecia

que não tomava banho a décadas, melhor: séculos.

- Não precisa pensar tanto na garota, ela não vai sair de lá!

- O quê, que garota?

- Aproveita que está mais perto e pegue aquela bituca para mim!

- Diga, que garota?

- É aquela que está no chão, com marca de batom. Pega para mim.

-Não! A garota que você disse! Olha, o que você quer? Dinheiro, é isso?

Tome!

Cauê tirou do bolso moedas de cinco e dez centavos. Colocou uma

caixa que estava ao lado do homem e que depois tinha a aparência de uma

cartola. E ficava assim, alternando entre caixa e cartola.

- Pelo menos pensou desta vez em algo. Sabe, sou ótimo em guardar

segredos. Posso guardar alguns seus, se quiser, mas exijo uma recompensa!

Fumaça saía do fundo da garganta do homem. Suas baforadas

pareciam ser arrancadas da alma e atiradas para fora do corpo, dançando

conforme o vento soprava e acompanhadas de um sorriso malicioso. A fumaça

em um tom forte de cinza subia lentamente aos céus, até desaparecer

completamente.

-Como assim, do que está falando – Cauê virou para falar com o

homem, que desapareceu sem deixar rastros de onde fora. O forte cheiro de

cigarro ainda permanecia no ar, juntamente com outro aroma que Cauê não

conseguia distinguir – ficou na dúvida entre Arruda e Jurema-Preta. Sua caixa

que em tempos virava cartola também desapareceu, junto com as moedas que

entregou ao homem. Restava agora somente uma grande poça de lama no

lugar em que o homem estava

- Mas nem sequer choveu! – resmungou antes de sair.

Com medo de se atrasar e sem ter o que pensar sobre aquele estranho

episódio, correu em direção à casa de Manu.

Manu morava no bairro da Liberdade, próximo à Rua Conselheiro

Furtado. Não demorou cinco minutos a mais, estava de frente a uma casa azul

com um pequeno jardim nos fundos. Tocou a campainha, olhou o cabelo na

tela do celular, observou um entregador de pizza três casas à frente.

Estranhara aquilo, ainda estava cedo – não era nem 19:30. Não teve muito

tempo para pensar sobre isso, já que Manu saiu na varanda e disse que já

estava descendo. Colocou o celular novamente no bolso esquerdo da calça

marrom que tanto gosta, quando algo queimou sua mão.

- Como isso foi parar aqui? – sussurrou enquanto segurava uma bituca

de cigarro que estava dentro de seu bolso e que fizera alguns furos em sua

calça sem ele perceber.

- O que é isso na sua mão? – Cauê não percebeu que Manu já estava

tão perto dele.

- Não é nada! – mentiu, enquanto deu um peteleco que fez a bituca voar

para o outro lado da rua.

Já estavam dentro da casa de Manu, quando Cauê pediu um pouco de

água enquanto não começavam a jogar baralho cigano. Realmente, mesmo

com seus chiliques, Marcelo estava certo: fazia muito calor na cidade. A

estampa da camisa de Cauê grudava em seu peito de tanto suor. Como queria

que chovesse, pensou.

- Sobre o que vai querer jogar hoje? Algo em geral ou específico?

-Não sei bem, Manu. Pode ser geral.

- Certo! – Manu levou à mão um antigo baralho, cujas cartas estavam

com as pontas amassadas, algumas até faltando uma parte. Felizmente, isso

parecia não interferir no jogo, já que Manu começara a embaralhá-las.

Distribuiu de forma uniforme em uma mesa. Fez cinco fileiras com quatro

cartas e cada fileira. Estava pronto.

Cauê já viu Manu jogando baralho cigano. Aprendeu que há muitas

maneiras de se jogar. Mesmo assim, confiava na amiga. Já sabia como

funcionava: a cada rodada, tinha que virar três cartas de sua preferência. Após

a interpretação, virava mais três cartas e assim sucessivamente até desejar

encerrar.

- Pronto – Cauê virou suas três primeiras cartas.

Manu ficou concentrada por um momento. A pausa permaneceu mais

um instante, até que olhou nos olhos de Cauê do mesmo jeito que olhava

quando lia o baralho aos outros.

- Bom, aqui diz...

Não perceberam quando o tempo fechou. Cauê realizara seu desejo:

estava chovendo. Talvez chovia mais do que naquela tarde em que parou para

conversar com aquele morador de rua perto do Metrô. Raios seguidos de fortes

trovoadas, fazendo as janelas, portas e tudo que continha na casa estremecer.

Manu tentou retomar a fala, quando um forte raio fez com que tudo em

sua casa de apagasse.

- Ótimo, como vamos continuar agora? Já escureceu!

- Não sei, Manu. Quem sabe a energia não volta logo?

- Tomara, só espero que... – Manu novamente foi interrompida. Dessa

vez não foi raio, nem trovão, mas sim um forte barulho do lado de fora da casa.

Alguém batia loucamente na porta, estava a ponto de derrubá-la.

- Cauê, espere. Vou com você!

Caminharam lentamente em direção à porta. À medida que se

aproximavam, mais fortes eram as batidas. Alguém gritava algo, mas com toda

aquela chuva era impossível entender algo.

- Abrimos ou não?

- E temos escolha, Cauê? No três nós soltamos o trinco e abrimos a

porta.

- Certo, você começa!

- Um

- Dois

Pena que não deu tempo de dizer três. Antes disso, a porta caiu de

tantas batidas. Por pouco não caíra em cima de Cauê e Manu, que

conseguiram se esquivar a tempo. Junto com a porta, um rapaz todo ensopado

estava no chão. Cauê se aproximou e depois de um tempo conseguiu

reconhecê-lo.

- Marcelo, que porra é essa? Por que você está aqui?

- Calma, cacete! Me ajuda aqui a levantar. Eu estava aqui por perto,

quando essa merda de chuva começou. Por que São Paulo é tão bipolar essa

merda de tempo. Ora é sol, ora chuva, calor, frio, decide aí! – mesmo

ensopado, Marcelo não deixava de ser o mesmo intragável de sempre.

Cauê levou Marcelo até o sofá de Manu, que um minuto depois estava

todo encharcado. Manu pegou algumas roupas do irmão, que esquecera por lá

depois que se mudou para outra casa.

- Mas isso aqui está mofado!

- É o que tem, Marcelo. Quer usar uma regata minha?

- Não, tudo bem...

- E agora, o que fazemos?

- Vamos esperar a chuva passar – disse Manu – e tentar arrumar a

merda que o Marcelo fez na porta.

- Não foi minha culpa. Começou a chover pra caralho.

- Tá bom, Marcelo – Manu aprendera há tempos que o melhor a se fazer

é evitar uma discussão com Marcelo, que sempre arrumará um argumento,

mesmo que sem sentido, para provar que ele é o certo da história.

Depois de trocado, Marcelo ajudou Cauê a colocar a porta novamente

em seu lugar de origem. A chuva estava quase parando, quando terminaram.

- Acho que aguenta mais um temporal desses.

- Nem brinca com isso, Marcelo.

- Calma, Manu. Só brinquei mesmo, que saco!

No meio de todo aquele alvoroço de chuva e desespero de Marcelo,

nem perceberam que já era noite lá fora. Ficaram surpresos com a escuridão

que era possível notar da janela. Cauê decidiu ir embora então. Frustrado, por

não conseguir jogar baralho cigano. Marcelo, que não tinha nenhum motivo

para continuar na casa de Manu, tratou de se despedir junto com Marcelo.

- Eu vou com vocês até o ponto, a chuva já parou mesmo e essa luz não

volta. Tomo um ar pelo menos – Manu agarrou sua camisa Jeans e colocou

sobre a camisa de banda que usava como pijama e pegou as chaves de casa.

Fez o movimento de apagar as luzes, mas frustrou-se com a ação rotineira.

A rua ainda estava com algumas poças d’agua quando foram em direção

ao ponto de ônibus. Era necessário cuidado para não afundar o pé em uma

delas.

-Merda! – tarde demais para Marcelo.

Caminharam vagarosamente, sentindo o frescor no corpo após um

temporal. Acompanhando as poças, galhos de árvores no chão partiam-se ao

menor toque do calçado. Olharam para o céu, que estava o mais limpo

possível. Muitas estrelas já davam as caras. Talvez não chovesse por uma

semana inteira depois dessa tempestade toda, pensou Manu. Pobre Manu,

ainda não entendeu a didática meteorológica Paulista.

A caminhada estava quase chegando ao fim. Logo mais Cauê estaria

em casa, pensando na monotonia que seria seu dia seguinte sem ao menos

vive-lo por completo. Queria algo diferente em seu dia. Sabe, poderia ser

qualquer coisa ao acaso. Pensou então em tudo que sempre vê pela frente

todos os dias. Lembrou-se do ônibus que sempre range a porta ao parar em

ponto; o casal que namora escondido dos pais em cima de um muro – não vejo

como isso possa ser discreto; o homem presunçoso que passeia com seu cão

perto da Catedral da Sé. Tinha tanta coisa a mais para ser pensada, tinha

mesmo. Infelizmente, foi interrompido por um grito agudo que entrava pelo

ouvido direito. Era Marcelo que gritava...

- Que é isso? – foi a única frase que Marcelo conseguiu pronunciar nos

dois segundos restantes antes de ser levado por um motoqueiro que era

familiar. Sim, era aquele entregador de pizza, pensou Cauê. Achara suspeito

mesmo. Arrastava Marcelo enquanto dirigia sua moto, até jogá-lo na garupa e

acelerar ainda mais.

Cauê correu o mais rápido do que correra em sua vida. Desacelerou

quando o homem tirou da cintura uma arma e atirou para cima. Mais dois

segundos... tinha virado a esquina. O que fariam agora?

- Quem é aquele homem, Cauê? – Manu ainda estava em estado de

choque.

- Não faço ideia. Talvez estivesse esperando para assaltar alguém.

Marcelo, do jeito que anda, deixa a entender que tem grana. Temos que achar

Marcelo.

- Como? Ele saiu em disparada pelas ruas...

- Precisamos encontra-lo, Manu – Cauê estava a ponto de perder as

esperanças, mas não podia desanimar, mesmo com Marcelo – de um jeito ou

de outro.

- Cala a boca, se não te encho de tiros – o motoqueiro só conseguia

repetir isso a Marcelo, que estava na garupa da moto, sem reação.

- O que você quer? Dinheiro? Cara, sou assalariado e estudante, pensa

nisso...

-Para de fingir, conheço gente como você. Vamos dar um passeio para

que você fale... e é melhor falar.

Marcelo estava com tanto medo que parecia estar sem visão. Em todo o

entra e sai de rua, percursos e atalhos que o motoqueiro fazia, não era capaz

de decorar o caminho de volta, caso conseguisse escapar. E como faria isso,

afinal? Marcelo só pensava em sair dessa com vida.

Andaram por mais uns dez minutos, nunca em linha reta. Aclives,

declives, curvas e depressões até chegar a um barracão de escola de samba

abandonado, perto da Tiquatira. Apontando a arma para Marcelo, o homem o

forçou a entrar primeiro.

- Lar doce lar! Vamos, entre.

Marcelo era um cara que se tivesse oportunidade, esnobaria de qualquer

um que cometesse uma gafe na sua frente. Mesmo sendo cômico, não tinha

forças para rir de si mesmo por estar com a calça cheia de urina.

Continuou a andar até que o homem indicou um lugar para que ele

ficasse. O homem o amarrou em uma pilastra com tinta descascada com restos

do que parecia ser uma fantasia de carnaval mofada.

- Muito bem, você já pode falar – o homem parecia não cansar o pulso,

pois ainda segurava sua arma.

- Falar o que?

- Onde você mora, sua grana, coisas valiosas. Quero tudo!

- Eu já disse que não tenho nada!

O homem parecia começava a ficar impaciente. Aproximou-se de

Marcelo e deu um tiro para o alto. Em seguida, encostou o cano quente da

arma em sua bochecha. Marcelo urrou de dor.

- E pode piorar, garoto. Vamos começar de novo? – Marcelo não

conseguia ver o rosto do motoqueiro, que ainda estava de capacete. Mas, lá no

fundo, era possível ver o ódio queimando suas retinas. Precisava fugir o mais

rápido que pudesse, mas precisava de ajuda. Pensou em Cauê e Manu.

- Venham rápido – sussurrou, antes de ouvir um estrondo. Mais alguém

entrou no barracão. Não devia ser amigo do motoqueiro, que também se

assustou com o barulho.

Cauê corria sem rumo pela rua. Manu tentava alcançá-lo, mas ele era

rápido demais. Precisavam pensar em algo, qualquer coisa. O tempo estava

passando e Cauê sabia que Marcelo era bocudo e isso piorava sua situação.

- Cauê, para um momento! – Manu teve que gritar para Cauê deixar de

correr.

- Temos que fazer alguma coisa, Manu. Não há tempo!

- Eu sei disso, mas correr sem rumo não ajuda em nada. Temos que

ligar para a polícia.

- Não! Pode piorar o lado de Marcelo. Tem que ser nós.

- Mas nem sabemos onde ele está.

- Vamos descobrir.

Continuaram a andar, até que, sem perceber, estavam próximo ao Metrô

República. A preocupação era tanta que nem sentiram o tanto que caminharam

e correram buscando qualquer coisa que ajudasse o amigo.

- Está tudo fechado por aqui. Ao invés de ajudarmos, podemos piorar

ainda mais as coisas se alguém nos abordar por aqui. Aí Marcelo dançou...

- Eu sei Manu, mas temos que continuar buscando.

Cauê precisava pensar em algo, mas era difícil com toda aquela pressão

tampando seus ouvidos e a respiração ofegante. Não queria pensar no pior.

Queria acreditar que Marcelo tinha conseguido escapar de alguma forma e que

logo mais estaria em casa e ligaria em seguida para contar aos amigos que

estava tudo bem e que tudo não passava de uma brincadeira de mal gosto dele

e que nunca mais faria isso de novo – quanto e.

Estavam na 24 de Maio. O tempo corria... não... voava em um ritmo mais

do que acelerado. Alguma hora iam encontrar o amigo, só precisavam procurar

mais e procurar e procurar...

- Ele vai ficar bem – uma voz rouca ecoou pela escadaria do metrô.

- Quem disse isso? – Cauê não era capaz de ver um palmo na sua

frente de tanta apreensão.

- É isso mesmo. Você pediu, você mereceu. – a voz parecia mais perto

de Cauê e Manu.

- Apareça! – Cauê não sabia mais para onde olhar.

- Acho que vem daquela lugar – Manu apontou, trêmula – só pode ser

ali.

Cauê pegou um pedaço qualquer de madeira que encontrou no chão e

seguiu em direção à voz.

- Então eu mereci? Como assim mereci?

- Eles julgaram o seu caso em particular válido. Como bom trabalhador

que sou, não posso descumprir ordem dada. Se eu fizer isso, perco minha

fama e, acredite, estou fodido. – a voz permanecia rouca e mais próxima de

Cauê e Manu.

Cauê estava próximo à escada do Metrô, quando correu para atacar o

dono daquela voz. Só tinha uma chance de acertar, não podia errar. Saltou e

arremessou o pedaço de madeira em direção à voz. Por um momento, toda a

República ficou em silêncio.

Cauê foi verificar se tinha acertado o dono da voz. Manu seguiu o amigo.

Surpreendeu-se ao ver que não havia ninguém na escadaria. O pedaço de

madeira tinha atravessado as grades do Metrô e caíra perto do fim de uma

escada rolante.

- Errou feio! – a voz retornou.

Não deu tempo de virarem, quando uma enorme sombra apareceu atrás

dos dois. Sombra que tomou forma de homem. Um homem muito alto, quase

dois metros de altura. Sua pele negra brilhava com a noite acima de vossas

cabeças.Estava bem vestido, como se tivesse saído de uma festa de gala. Seu

blazer era mais parecido com uma capa do que com um blazer. Repousava

uma cartola preta na mão esquerda. Quem era aquele homem, Cauê pensou.

- Tiriri – o homem fez uma espécie de reverência – Exu Triri...

Cauê, novamente, estava sem reação. Nunca ouvira falar em um nome

desses nem mesmo um homem que se parecesse com esse tal de Tiriri.

-Bom... eu sou a...

- Manu – o homem apontou com seu anelar cheio de anéis de cores e

brilhos diferentes – e esse que está de boca aberta é o Cauê. Que foi, parece

que não nos conhecemos?

- Mas eu não conheço.

- Como que tu esqueces um temporal como o daquele dia? Ainda

guardo suas moedas, moço. Estou juntando para comprar um agrado à minha

esposa, Rosa Caveira. Depois que se desfez de João Caveira, tenho uma

chance ao menos. Moça difícil aquela... – Tiriri parou ao perceber que nenhum

dos dois estava entendendo aquela conversa.

- Que moedas?

O homem então se transformou em uma figura que Cauê conhecia: o

morador de rua que possuía uma cartola e ficava circulando pela República. O

mesmo que puxou o bolso da calça de Cauê e pediu algo para comer.

-Reconhece agora? – segundos depois, o homem voltou à forma

elegante que estava.

- Mas como isso é possível? Quem é você?!

Sou um dos muitos guardiões presentes nesta terra. Somos chamados

de Exus e tenho ordem da Lei Maior para assumir esta forma humana simples

e ajudar aos que mais precisam. Assim como eu, há muitos outros com esta

missão. Esta é uma longa história. Agora o que importa: seu amigo vai ficar

bem. Lembra-se de um outro morador de rua que pediu a ti para que pegasse

aquela bituca de cigarro do chão e desse para ele? É um dos que andam ao

meu lado. Emprestei a minha cartola a ele para que eu pudesse saber ao certo

onde estava e se precisava da minha ajuda. Mas acho que ele sabe se virar

mais do que eu.

- E onde ele está? – Manu não hesitou em perguntar.

- Deixe-me pensar – o homem colocou sua cartola na cabeça e tirou do

fundo de sua capa um charuto aceso. Demorou mais alguns instantes,

enquanto soltava fumo pelos ares.

- E então...

- Ele está resgatando seu amigo nesse exato momento.

-Temos que ir até ele. – Cauê parecia mais tranquilizado.

-Não precisam, tudo estará certo. O que vocês precisam é descansar – o

homem tocou gentilmente a testa de Cauê, e em seguida a de Manu. Ambos

começaram a bocejar e segundos depois caíram no sono – muito bem, hora de

voltar para casa.

Instantes depois, o homem desaparecera, junto com Cauê e Manu.

Marcelo não acreditou quando se deparou com aquele homem, ou o que

parecia ser um homem.

- Quem é você, porra! É da polícia?

- Não, talvez um dia você descubra.

O motoqueiro atirou no homem a sua frente, mas não acertou. Na

verdade, o homem tinha desaparecido, deixando somente um rastro de lama.

- Mas que porra é es... – o motoqueiro não conseguiu terminar sua frase,

quando foi lançado para longe de Marcelo.

- Hora das apresentações, mesmo eu não gostando muito. Sou o Exu do

Lodo, para sua infelicidade.

-E o quê?

- E o quê? – Marcelo deixou escapar também.

O homem não respondeu. Partiu em direção o motoqueiro, que disparou

por todo o barracão. Não percebeu quando foi empurrado novamente, nem

quando escorregou na lama que estava por todo o chão. A cada tombo que

levava, Exu do Lodo gargalhava como nunca. Parecia se divertir muito.

- Então, seu Exu do Lobo... me tire daqui!

-É Lodo... Lodo! – gritou o Exu enquanto desamarrava Marcelo.

Não percebeu quando, mesmo cambaleando, o motoqueiro vinha em

sua direção. Apontou a arma para a cabeça de Exu do Lodo, pronto para atirar.

-É agora que você morre...– atirou, mas nada saiu. Todas as suas balas

já haviam acabado. Cápsulas e mais cápsulas pelo chão – não pode ser.

-Ah, pode ser sim!

Marcelo não percebeu o que aconteceu depois. Tudo pareceu tão

rápido. Exu do Lodo ficou frente a frente do motoqueiro. Andava meio curvado,

algas e todo o fitoplâncton cobria seu corpo. Encarava o motoqueiro.

- Não posso julgá-lo pela minha Lei, mas posso encaminhá-lo para a lei

dos homens. Escute o que você fará: na próxima esquina há uma delegacia,

você vai entrar e confessar tudo o que fez e será julgado pela vossa justiça e a

justiça de nosso Pai Xangô. Faça isso agora!

O homem parecia abobado. Sem nenhuma palavra, repetia o que Exu

do Lodo dizia e saiu do barracão, indo em direção à delegacia mais próxima.

- Como você fez isso?

- Trabalhando para a Lei Maior – Em um instante, Exu do Lodo estava

agora cara a cara com Marcelo. Disse algo em seu ouvido que o fez ficar

sonolento, até cair no sono.

Quando o dia estava prestes a clarear, Cauê, Manu e Marcelo dormiam

em suas respectivas casas. Talvez sem lembrar tudo o que tinha acontecido ou

deixou de ocorrer. Próximo ao Metrô República, dois homens aguardavam o

dia clarear.

-Acho que cumprimos mais uma missão.

-Ajudá- los me deixa com uma dor nas costas.

- Exu do Lodo, você sempre foi curvado assim, deixa de besteira. Vive

se arrastando por aí.

- Mas o que importa é que agradamos o pessoal lá de cima.

- Até a próxima tarefa, salve a sua banda – Exu Tiriri tirou gentilmente

sua cartola para se despedir de Exu do Lodo.

-Salve a sua também – Exu do Lodo tirou um pouco de musgo da face, o

que demonstrava estar se despedindo também de forma educada.

A cidade então acordou como se nada tivesse acontecido. Parecia mais

um dia normal em São Paulo prestes a começar. Pessoas acordavam cedo,

pegavam seus ônibus cheios até o serviço, resmungavam, riam, brigavam...

nada fora da normalidade.

Não perceberam o lindo sol nascia. O dia seria quente novamente. Não

perceberam também quando dois moradores de rua se abraçavam, em tom de

despedida. Um andava com uma cartola velha nas mãos enquanto mancava ao

caminhar, barba cobrindo quase todo o rosto. O outro andava mais

vagarosamente, talvez estivesse bêbado, e a cada passo que dava deixava um

rastro de lama. Partiam em lados opostos, até se perderem na multidão e caos

que é São Paulo. E que caos é!