Talvez fosse a tarde mais quente de São Paulo, pensou Marcelo. Como
estava enganado! Não passara de uma preparação para a próxima semana... e
que semana!
Na volta para casa, queixava-se da indecisão que é São Paulo.
- Frio, Calor, Frio, Calor, assim não dá Cauê!
- Calma cara! Vi na TV que fará ainda mais calor. Se eu fosse você,
guardava essa raiva contra o mundo para depois. Ainda são 18:03, dá tempo
de ir até a casa da Manu jogar baralho cigano.
- Porra Cauê. Não fode! Você ainda acredita nessas coisas?
- Não sei se acredito, Marcelo. A Manu disse que um dia vai me explicar
como funciona. Bate aquela curiosidade.
- Agora que não vou mesmo. Enquanto a Manu joga e você fica babando
por ela eu faço o que? Fico assistindo a tudo? Claro que não né.
- Bom, já que você não vai, eu vou. Nos vemos amanhã então, Marcelo.
Cauê quase nunca fora amigo de Marcelo. Passaram a conversar mais
depois que o Ensino Médio acabou, por pura coincidência. Até hoje se
lembrava daquele dia. Caía uma chuva daquelas lá pelos lados da Praça da
República. Marcelo tivera sorte, pois estava dobrando a Rua do Arouche,
quando ela caiu. Cauê ainda estava na 24 de Maio.
E aquele corre daqui, corre de lá começou. Ambos iam para o Metrô,
uma tarefa fácil, se não fosse o mundo caindo a seus pés. Marcelo estava mais
perto e sem sombra de dúvidas chegaria primeiro, mas o trânsito de guarda-
chuvas o encurralou sem ter para onde sair. Tentou apressar o pessoal que
vinha pela frente, mas uma senhora acabara de prender o pé em uma vala e
todos faziam uma roda para ajudá-la a desenroscar o pé e muitos curiosos
observavam e até mesmo esqueciam-se da chuva que caía em São Paulo e a
ambulância não vinha e aquilo estava estressando Marcelo – e quanto e -, que
gritou para o rapaz da frente abrir passagem, mas fora abafado pelo som de
um trovão – e que trovão.
Cauê, que estava mais distante do Metrô, deu sorte e não encontrou
nenhum guarda-chuva para pará-lo, mas freou o passo quando alguma coisa
puxou o bolso rasgado da calça para baixo. Virou-se assustado, mas logo
manteve a calma ao perceber que era um dos muitos moradores de rua da
cidade.
Mesmo com a chuva engrossando, o homem encarava Cauê. Tinha
baixa estatura, pensou, mas talvez só estivesse bem agachado. Havia mais
barba do que rosto naquela face. O que diferenciava um do outro eram suas
olheiras e, mais profundo ainda, um par de olhos castanho-mel. Usava trapos
de roupa e um grande cobertor preto para se proteger da chuva e do frio.
Queria dizer algo...
- Me dá uma coisa para comer aí?
A chuva estava tão forte que Cauê não conseguira entender o que o
homem dissera.
- Comer...alguma coisa – repetiu, talvez percebendo que não fora
ouvido.
Mesmo com aquela chuva, Cauê encostou seu guarda-chuva - que não
estava lá essas coisas – no chão e procurou em sua bolsa toda ensopada por
alguma comida para dar àquele homem.
- Desculpe – gritou – mas não tenho nada, só estas moedas de
cinquenta centavos.
Ao contrário do que Cauê pensou, o homem não parecia chateado.
Levantou-se um pouco mais e tirou do seu montinho de trapos um velho
chapéu, mais ou menos parecido com uma cartola.
- Não precisa se desculpar. Fico feliz com o agrado. Vamos, bote aqui
dentro.
Cauê estava aproximando a mão com três moedas de três centavos
quando o homem retirou rapidamente.
- Ora essa, mas sem pensar em nada?
- Como assim?
- Não coloque por colocar! Pense pelo menos em algo, cacete!
Cauê novamente não entendeu o que aquele homem estava querendo
dizer a ele. Não conseguia ser criativo assim do nada para pensar em algo,
principalmente debaixo daquela chuva que ainda caía... e como caía. Pensou
em algo qualquer, “ah, não sei, o tempo de escola, os amigos, essas coisas”.
Percebendo a face pensante de Cauê, o homem tornou a aproximar a
cartola para perto dele. Cauê dessa vez foi mais rápido, temendo estar sendo
zombado por um morador de rua, que provavelmente estava bêbado, vivendo
uma de suas alucinações em meio a um temporal.
- Muito bem! – o homem fez um curto gesto agradecendo.
Cauê percebeu que estava atraso no momento em que olhou seu
relógio. Pegou rapidamente seu guarda-chuva e saiu sem se despedir. Podia
estar delirando, tomara muita chuva, mas jurou ter ouvido um murmúrio do
homem que continuava agachado, mas que agora fazia barulho chacoalhando
as moedas que estavam em sua cartola.
- Diga a Marcelo para parar de ser tão filho da puta!
Só podia estar louco, pensou. Devia ter chutado um nome e coincidiu
com um velho amigo da escola que há tempos não dava as caras. “Marcelo,
onde anda Marcelo?”, pensou. Mesmo não fazendo parecer, no fundo Cauê
sabia exatamente o que o homem estava dizendo.
- Porra, é hoje que não chego nessa merda de Metrô – berrou alguém
que Cauê enroscara seu guarda-chuva sem perceber, estava tão pensativo.
- Desculpe, eu estava... – uma longa pausa se formou no meio de todo o
caos que é São Paulo.
- Cauê, quanto tempo!
Ainda sem saber bem o que fazer, Cauê desenroscou lentamente seu
guarda-chuva e abraçou seu antigo amigo da escola: Marcelo.
- É mesmo, quanto tempo!
- Está indo para onde? – Marcelo não tinha mudado muito do que Cauê
pensava ter mudado.
- Cara, tô indo pra casa. Preciso pegar o Metrô.
- Caralho, que sorte então. Eu estou indo para lá também. Na verdade,
eu já estaria em casa, mas essa bosta de chuva só está me atrasando. Chove,
para, chove, para. Assim não dá né? Para ajudar mais ainda, uma velha me
prende o pé em uma vala e todo mundo faz aquela roda imensa para ver o que
aconteceu. Alguém ali é medico por acaso? Claro que não! Enfim, como vai a
vida?
- Bom, agora eu estou trabalhando e...
- Entendi – rebate Marcelo, mostrando desinteresse - olha lá o Metrô.
Se corrermos, vamos conseguir pegá-lo.
- Pode ir, eu pego o próximo.
-Então tá, nos vemos um dia por aí ao acaso.
- Sim, sim – Cauê disse enquanto Marcelo corria todo encharcado em
direção ao Metrô.
E desde aquele dia, tivera a certeza de que o amigo não havia mudado
em nada.
Cauê já estava perto da casa de Manu, quando parou de pensar em
tudo que aconteceu e como reencontrou seu amigo Marcelo. Mais algumas
quadras e estaria lá. Como sempre, andava distraído e por isso não percebeu
quando pisou por acidente na mão de um homem que tentava pegar uma
bituca de cigarro do chão.
- Ai meu Deus, desculpe. Eu estava distraído e nem vi a sua mão no...
- Tá, tá, tá, chega!
Cauê então olhou para o dono da mão que acabara de pisar. Assustou-
se quando viu que ela pertencia a um homem de aparência horrível. Parecia
que não tomava banho a décadas, melhor: séculos.
- Não precisa pensar tanto na garota, ela não vai sair de lá!
- O quê, que garota?
- Aproveita que está mais perto e pegue aquela bituca para mim!
- Diga, que garota?
- É aquela que está no chão, com marca de batom. Pega para mim.
-Não! A garota que você disse! Olha, o que você quer? Dinheiro, é isso?
Tome!
Cauê tirou do bolso moedas de cinco e dez centavos. Colocou uma
caixa que estava ao lado do homem e que depois tinha a aparência de uma
cartola. E ficava assim, alternando entre caixa e cartola.
- Pelo menos pensou desta vez em algo. Sabe, sou ótimo em guardar
segredos. Posso guardar alguns seus, se quiser, mas exijo uma recompensa!
Fumaça saía do fundo da garganta do homem. Suas baforadas
pareciam ser arrancadas da alma e atiradas para fora do corpo, dançando
conforme o vento soprava e acompanhadas de um sorriso malicioso. A fumaça
em um tom forte de cinza subia lentamente aos céus, até desaparecer
completamente.
-Como assim, do que está falando – Cauê virou para falar com o
homem, que desapareceu sem deixar rastros de onde fora. O forte cheiro de
cigarro ainda permanecia no ar, juntamente com outro aroma que Cauê não
conseguia distinguir – ficou na dúvida entre Arruda e Jurema-Preta. Sua caixa
que em tempos virava cartola também desapareceu, junto com as moedas que
entregou ao homem. Restava agora somente uma grande poça de lama no
lugar em que o homem estava
- Mas nem sequer choveu! – resmungou antes de sair.
Com medo de se atrasar e sem ter o que pensar sobre aquele estranho
episódio, correu em direção à casa de Manu.
Manu morava no bairro da Liberdade, próximo à Rua Conselheiro
Furtado. Não demorou cinco minutos a mais, estava de frente a uma casa azul
com um pequeno jardim nos fundos. Tocou a campainha, olhou o cabelo na
tela do celular, observou um entregador de pizza três casas à frente.
Estranhara aquilo, ainda estava cedo – não era nem 19:30. Não teve muito
tempo para pensar sobre isso, já que Manu saiu na varanda e disse que já
estava descendo. Colocou o celular novamente no bolso esquerdo da calça
marrom que tanto gosta, quando algo queimou sua mão.
- Como isso foi parar aqui? – sussurrou enquanto segurava uma bituca
de cigarro que estava dentro de seu bolso e que fizera alguns furos em sua
calça sem ele perceber.
- O que é isso na sua mão? – Cauê não percebeu que Manu já estava
tão perto dele.
- Não é nada! – mentiu, enquanto deu um peteleco que fez a bituca voar
para o outro lado da rua.
Já estavam dentro da casa de Manu, quando Cauê pediu um pouco de
água enquanto não começavam a jogar baralho cigano. Realmente, mesmo
com seus chiliques, Marcelo estava certo: fazia muito calor na cidade. A
estampa da camisa de Cauê grudava em seu peito de tanto suor. Como queria
que chovesse, pensou.
- Sobre o que vai querer jogar hoje? Algo em geral ou específico?
-Não sei bem, Manu. Pode ser geral.
- Certo! – Manu levou à mão um antigo baralho, cujas cartas estavam
com as pontas amassadas, algumas até faltando uma parte. Felizmente, isso
parecia não interferir no jogo, já que Manu começara a embaralhá-las.
Distribuiu de forma uniforme em uma mesa. Fez cinco fileiras com quatro
cartas e cada fileira. Estava pronto.
Cauê já viu Manu jogando baralho cigano. Aprendeu que há muitas
maneiras de se jogar. Mesmo assim, confiava na amiga. Já sabia como
funcionava: a cada rodada, tinha que virar três cartas de sua preferência. Após
a interpretação, virava mais três cartas e assim sucessivamente até desejar
encerrar.
- Pronto – Cauê virou suas três primeiras cartas.
Manu ficou concentrada por um momento. A pausa permaneceu mais
um instante, até que olhou nos olhos de Cauê do mesmo jeito que olhava
quando lia o baralho aos outros.
- Bom, aqui diz...
Não perceberam quando o tempo fechou. Cauê realizara seu desejo:
estava chovendo. Talvez chovia mais do que naquela tarde em que parou para
conversar com aquele morador de rua perto do Metrô. Raios seguidos de fortes
trovoadas, fazendo as janelas, portas e tudo que continha na casa estremecer.
Manu tentou retomar a fala, quando um forte raio fez com que tudo em
sua casa de apagasse.
- Ótimo, como vamos continuar agora? Já escureceu!
- Não sei, Manu. Quem sabe a energia não volta logo?
- Tomara, só espero que... – Manu novamente foi interrompida. Dessa
vez não foi raio, nem trovão, mas sim um forte barulho do lado de fora da casa.
Alguém batia loucamente na porta, estava a ponto de derrubá-la.
- Cauê, espere. Vou com você!
Caminharam lentamente em direção à porta. À medida que se
aproximavam, mais fortes eram as batidas. Alguém gritava algo, mas com toda
aquela chuva era impossível entender algo.
- Abrimos ou não?
- E temos escolha, Cauê? No três nós soltamos o trinco e abrimos a
porta.
- Certo, você começa!
- Um
- Dois
Pena que não deu tempo de dizer três. Antes disso, a porta caiu de
tantas batidas. Por pouco não caíra em cima de Cauê e Manu, que
conseguiram se esquivar a tempo. Junto com a porta, um rapaz todo ensopado
estava no chão. Cauê se aproximou e depois de um tempo conseguiu
reconhecê-lo.
- Marcelo, que porra é essa? Por que você está aqui?
- Calma, cacete! Me ajuda aqui a levantar. Eu estava aqui por perto,
quando essa merda de chuva começou. Por que São Paulo é tão bipolar essa
merda de tempo. Ora é sol, ora chuva, calor, frio, decide aí! – mesmo
ensopado, Marcelo não deixava de ser o mesmo intragável de sempre.
Cauê levou Marcelo até o sofá de Manu, que um minuto depois estava
todo encharcado. Manu pegou algumas roupas do irmão, que esquecera por lá
depois que se mudou para outra casa.
- Mas isso aqui está mofado!
- É o que tem, Marcelo. Quer usar uma regata minha?
- Não, tudo bem...
- E agora, o que fazemos?
- Vamos esperar a chuva passar – disse Manu – e tentar arrumar a
merda que o Marcelo fez na porta.
- Não foi minha culpa. Começou a chover pra caralho.
- Tá bom, Marcelo – Manu aprendera há tempos que o melhor a se fazer
é evitar uma discussão com Marcelo, que sempre arrumará um argumento,
mesmo que sem sentido, para provar que ele é o certo da história.
Depois de trocado, Marcelo ajudou Cauê a colocar a porta novamente
em seu lugar de origem. A chuva estava quase parando, quando terminaram.
- Acho que aguenta mais um temporal desses.
- Nem brinca com isso, Marcelo.
- Calma, Manu. Só brinquei mesmo, que saco!
No meio de todo aquele alvoroço de chuva e desespero de Marcelo,
nem perceberam que já era noite lá fora. Ficaram surpresos com a escuridão
que era possível notar da janela. Cauê decidiu ir embora então. Frustrado, por
não conseguir jogar baralho cigano. Marcelo, que não tinha nenhum motivo
para continuar na casa de Manu, tratou de se despedir junto com Marcelo.
- Eu vou com vocês até o ponto, a chuva já parou mesmo e essa luz não
volta. Tomo um ar pelo menos – Manu agarrou sua camisa Jeans e colocou
sobre a camisa de banda que usava como pijama e pegou as chaves de casa.
Fez o movimento de apagar as luzes, mas frustrou-se com a ação rotineira.
A rua ainda estava com algumas poças d’agua quando foram em direção
ao ponto de ônibus. Era necessário cuidado para não afundar o pé em uma
delas.
-Merda! – tarde demais para Marcelo.
Caminharam vagarosamente, sentindo o frescor no corpo após um
temporal. Acompanhando as poças, galhos de árvores no chão partiam-se ao
menor toque do calçado. Olharam para o céu, que estava o mais limpo
possível. Muitas estrelas já davam as caras. Talvez não chovesse por uma
semana inteira depois dessa tempestade toda, pensou Manu. Pobre Manu,
ainda não entendeu a didática meteorológica Paulista.
A caminhada estava quase chegando ao fim. Logo mais Cauê estaria
em casa, pensando na monotonia que seria seu dia seguinte sem ao menos
vive-lo por completo. Queria algo diferente em seu dia. Sabe, poderia ser
qualquer coisa ao acaso. Pensou então em tudo que sempre vê pela frente
todos os dias. Lembrou-se do ônibus que sempre range a porta ao parar em
ponto; o casal que namora escondido dos pais em cima de um muro – não vejo
como isso possa ser discreto; o homem presunçoso que passeia com seu cão
perto da Catedral da Sé. Tinha tanta coisa a mais para ser pensada, tinha
mesmo. Infelizmente, foi interrompido por um grito agudo que entrava pelo
ouvido direito. Era Marcelo que gritava...
- Que é isso? – foi a única frase que Marcelo conseguiu pronunciar nos
dois segundos restantes antes de ser levado por um motoqueiro que era
familiar. Sim, era aquele entregador de pizza, pensou Cauê. Achara suspeito
mesmo. Arrastava Marcelo enquanto dirigia sua moto, até jogá-lo na garupa e
acelerar ainda mais.
Cauê correu o mais rápido do que correra em sua vida. Desacelerou
quando o homem tirou da cintura uma arma e atirou para cima. Mais dois
segundos... tinha virado a esquina. O que fariam agora?
- Quem é aquele homem, Cauê? – Manu ainda estava em estado de
choque.
- Não faço ideia. Talvez estivesse esperando para assaltar alguém.
Marcelo, do jeito que anda, deixa a entender que tem grana. Temos que achar
Marcelo.
- Como? Ele saiu em disparada pelas ruas...
- Precisamos encontra-lo, Manu – Cauê estava a ponto de perder as
esperanças, mas não podia desanimar, mesmo com Marcelo – de um jeito ou
de outro.
- Cala a boca, se não te encho de tiros – o motoqueiro só conseguia
repetir isso a Marcelo, que estava na garupa da moto, sem reação.
- O que você quer? Dinheiro? Cara, sou assalariado e estudante, pensa
nisso...
-Para de fingir, conheço gente como você. Vamos dar um passeio para
que você fale... e é melhor falar.
Marcelo estava com tanto medo que parecia estar sem visão. Em todo o
entra e sai de rua, percursos e atalhos que o motoqueiro fazia, não era capaz
de decorar o caminho de volta, caso conseguisse escapar. E como faria isso,
afinal? Marcelo só pensava em sair dessa com vida.
Andaram por mais uns dez minutos, nunca em linha reta. Aclives,
declives, curvas e depressões até chegar a um barracão de escola de samba
abandonado, perto da Tiquatira. Apontando a arma para Marcelo, o homem o
forçou a entrar primeiro.
- Lar doce lar! Vamos, entre.
Marcelo era um cara que se tivesse oportunidade, esnobaria de qualquer
um que cometesse uma gafe na sua frente. Mesmo sendo cômico, não tinha
forças para rir de si mesmo por estar com a calça cheia de urina.
Continuou a andar até que o homem indicou um lugar para que ele
ficasse. O homem o amarrou em uma pilastra com tinta descascada com restos
do que parecia ser uma fantasia de carnaval mofada.
- Muito bem, você já pode falar – o homem parecia não cansar o pulso,
pois ainda segurava sua arma.
- Falar o que?
- Onde você mora, sua grana, coisas valiosas. Quero tudo!
- Eu já disse que não tenho nada!
O homem parecia começava a ficar impaciente. Aproximou-se de
Marcelo e deu um tiro para o alto. Em seguida, encostou o cano quente da
arma em sua bochecha. Marcelo urrou de dor.
- E pode piorar, garoto. Vamos começar de novo? – Marcelo não
conseguia ver o rosto do motoqueiro, que ainda estava de capacete. Mas, lá no
fundo, era possível ver o ódio queimando suas retinas. Precisava fugir o mais
rápido que pudesse, mas precisava de ajuda. Pensou em Cauê e Manu.
- Venham rápido – sussurrou, antes de ouvir um estrondo. Mais alguém
entrou no barracão. Não devia ser amigo do motoqueiro, que também se
assustou com o barulho.
Cauê corria sem rumo pela rua. Manu tentava alcançá-lo, mas ele era
rápido demais. Precisavam pensar em algo, qualquer coisa. O tempo estava
passando e Cauê sabia que Marcelo era bocudo e isso piorava sua situação.
- Cauê, para um momento! – Manu teve que gritar para Cauê deixar de
correr.
- Temos que fazer alguma coisa, Manu. Não há tempo!
- Eu sei disso, mas correr sem rumo não ajuda em nada. Temos que
ligar para a polícia.
- Não! Pode piorar o lado de Marcelo. Tem que ser nós.
- Mas nem sabemos onde ele está.
- Vamos descobrir.
Continuaram a andar, até que, sem perceber, estavam próximo ao Metrô
República. A preocupação era tanta que nem sentiram o tanto que caminharam
e correram buscando qualquer coisa que ajudasse o amigo.
- Está tudo fechado por aqui. Ao invés de ajudarmos, podemos piorar
ainda mais as coisas se alguém nos abordar por aqui. Aí Marcelo dançou...
- Eu sei Manu, mas temos que continuar buscando.
Cauê precisava pensar em algo, mas era difícil com toda aquela pressão
tampando seus ouvidos e a respiração ofegante. Não queria pensar no pior.
Queria acreditar que Marcelo tinha conseguido escapar de alguma forma e que
logo mais estaria em casa e ligaria em seguida para contar aos amigos que
estava tudo bem e que tudo não passava de uma brincadeira de mal gosto dele
e que nunca mais faria isso de novo – quanto e.
Estavam na 24 de Maio. O tempo corria... não... voava em um ritmo mais
do que acelerado. Alguma hora iam encontrar o amigo, só precisavam procurar
mais e procurar e procurar...
- Ele vai ficar bem – uma voz rouca ecoou pela escadaria do metrô.
- Quem disse isso? – Cauê não era capaz de ver um palmo na sua
frente de tanta apreensão.
- É isso mesmo. Você pediu, você mereceu. – a voz parecia mais perto
de Cauê e Manu.
- Apareça! – Cauê não sabia mais para onde olhar.
- Acho que vem daquela lugar – Manu apontou, trêmula – só pode ser
ali.
Cauê pegou um pedaço qualquer de madeira que encontrou no chão e
seguiu em direção à voz.
- Então eu mereci? Como assim mereci?
- Eles julgaram o seu caso em particular válido. Como bom trabalhador
que sou, não posso descumprir ordem dada. Se eu fizer isso, perco minha
fama e, acredite, estou fodido. – a voz permanecia rouca e mais próxima de
Cauê e Manu.
Cauê estava próximo à escada do Metrô, quando correu para atacar o
dono daquela voz. Só tinha uma chance de acertar, não podia errar. Saltou e
arremessou o pedaço de madeira em direção à voz. Por um momento, toda a
República ficou em silêncio.
Cauê foi verificar se tinha acertado o dono da voz. Manu seguiu o amigo.
Surpreendeu-se ao ver que não havia ninguém na escadaria. O pedaço de
madeira tinha atravessado as grades do Metrô e caíra perto do fim de uma
escada rolante.
- Errou feio! – a voz retornou.
Não deu tempo de virarem, quando uma enorme sombra apareceu atrás
dos dois. Sombra que tomou forma de homem. Um homem muito alto, quase
dois metros de altura. Sua pele negra brilhava com a noite acima de vossas
cabeças.Estava bem vestido, como se tivesse saído de uma festa de gala. Seu
blazer era mais parecido com uma capa do que com um blazer. Repousava
uma cartola preta na mão esquerda. Quem era aquele homem, Cauê pensou.
- Tiriri – o homem fez uma espécie de reverência – Exu Triri...
Cauê, novamente, estava sem reação. Nunca ouvira falar em um nome
desses nem mesmo um homem que se parecesse com esse tal de Tiriri.
-Bom... eu sou a...
- Manu – o homem apontou com seu anelar cheio de anéis de cores e
brilhos diferentes – e esse que está de boca aberta é o Cauê. Que foi, parece
que não nos conhecemos?
- Mas eu não conheço.
- Como que tu esqueces um temporal como o daquele dia? Ainda
guardo suas moedas, moço. Estou juntando para comprar um agrado à minha
esposa, Rosa Caveira. Depois que se desfez de João Caveira, tenho uma
chance ao menos. Moça difícil aquela... – Tiriri parou ao perceber que nenhum
dos dois estava entendendo aquela conversa.
- Que moedas?
O homem então se transformou em uma figura que Cauê conhecia: o
morador de rua que possuía uma cartola e ficava circulando pela República. O
mesmo que puxou o bolso da calça de Cauê e pediu algo para comer.
-Reconhece agora? – segundos depois, o homem voltou à forma
elegante que estava.
- Mas como isso é possível? Quem é você?!
Sou um dos muitos guardiões presentes nesta terra. Somos chamados
de Exus e tenho ordem da Lei Maior para assumir esta forma humana simples
e ajudar aos que mais precisam. Assim como eu, há muitos outros com esta
missão. Esta é uma longa história. Agora o que importa: seu amigo vai ficar
bem. Lembra-se de um outro morador de rua que pediu a ti para que pegasse
aquela bituca de cigarro do chão e desse para ele? É um dos que andam ao
meu lado. Emprestei a minha cartola a ele para que eu pudesse saber ao certo
onde estava e se precisava da minha ajuda. Mas acho que ele sabe se virar
mais do que eu.
- E onde ele está? – Manu não hesitou em perguntar.
- Deixe-me pensar – o homem colocou sua cartola na cabeça e tirou do
fundo de sua capa um charuto aceso. Demorou mais alguns instantes,
enquanto soltava fumo pelos ares.
- E então...
- Ele está resgatando seu amigo nesse exato momento.
-Temos que ir até ele. – Cauê parecia mais tranquilizado.
-Não precisam, tudo estará certo. O que vocês precisam é descansar – o
homem tocou gentilmente a testa de Cauê, e em seguida a de Manu. Ambos
começaram a bocejar e segundos depois caíram no sono – muito bem, hora de
voltar para casa.
Instantes depois, o homem desaparecera, junto com Cauê e Manu.
Marcelo não acreditou quando se deparou com aquele homem, ou o que
parecia ser um homem.
- Quem é você, porra! É da polícia?
- Não, talvez um dia você descubra.
O motoqueiro atirou no homem a sua frente, mas não acertou. Na
verdade, o homem tinha desaparecido, deixando somente um rastro de lama.
- Mas que porra é es... – o motoqueiro não conseguiu terminar sua frase,
quando foi lançado para longe de Marcelo.
- Hora das apresentações, mesmo eu não gostando muito. Sou o Exu do
Lodo, para sua infelicidade.
-E o quê?
- E o quê? – Marcelo deixou escapar também.
O homem não respondeu. Partiu em direção o motoqueiro, que disparou
por todo o barracão. Não percebeu quando foi empurrado novamente, nem
quando escorregou na lama que estava por todo o chão. A cada tombo que
levava, Exu do Lodo gargalhava como nunca. Parecia se divertir muito.
- Então, seu Exu do Lobo... me tire daqui!
-É Lodo... Lodo! – gritou o Exu enquanto desamarrava Marcelo.
Não percebeu quando, mesmo cambaleando, o motoqueiro vinha em
sua direção. Apontou a arma para a cabeça de Exu do Lodo, pronto para atirar.
-É agora que você morre...– atirou, mas nada saiu. Todas as suas balas
já haviam acabado. Cápsulas e mais cápsulas pelo chão – não pode ser.
-Ah, pode ser sim!
Marcelo não percebeu o que aconteceu depois. Tudo pareceu tão
rápido. Exu do Lodo ficou frente a frente do motoqueiro. Andava meio curvado,
algas e todo o fitoplâncton cobria seu corpo. Encarava o motoqueiro.
- Não posso julgá-lo pela minha Lei, mas posso encaminhá-lo para a lei
dos homens. Escute o que você fará: na próxima esquina há uma delegacia,
você vai entrar e confessar tudo o que fez e será julgado pela vossa justiça e a
justiça de nosso Pai Xangô. Faça isso agora!
O homem parecia abobado. Sem nenhuma palavra, repetia o que Exu
do Lodo dizia e saiu do barracão, indo em direção à delegacia mais próxima.
- Como você fez isso?
- Trabalhando para a Lei Maior – Em um instante, Exu do Lodo estava
agora cara a cara com Marcelo. Disse algo em seu ouvido que o fez ficar
sonolento, até cair no sono.
Quando o dia estava prestes a clarear, Cauê, Manu e Marcelo dormiam
em suas respectivas casas. Talvez sem lembrar tudo o que tinha acontecido ou
deixou de ocorrer. Próximo ao Metrô República, dois homens aguardavam o
dia clarear.
-Acho que cumprimos mais uma missão.
-Ajudá- los me deixa com uma dor nas costas.
- Exu do Lodo, você sempre foi curvado assim, deixa de besteira. Vive
se arrastando por aí.
- Mas o que importa é que agradamos o pessoal lá de cima.
- Até a próxima tarefa, salve a sua banda – Exu Tiriri tirou gentilmente
sua cartola para se despedir de Exu do Lodo.
-Salve a sua também – Exu do Lodo tirou um pouco de musgo da face, o
que demonstrava estar se despedindo também de forma educada.
A cidade então acordou como se nada tivesse acontecido. Parecia mais
um dia normal em São Paulo prestes a começar. Pessoas acordavam cedo,
pegavam seus ônibus cheios até o serviço, resmungavam, riam, brigavam...
nada fora da normalidade.
Não perceberam o lindo sol nascia. O dia seria quente novamente. Não
perceberam também quando dois moradores de rua se abraçavam, em tom de
despedida. Um andava com uma cartola velha nas mãos enquanto mancava ao
caminhar, barba cobrindo quase todo o rosto. O outro andava mais
vagarosamente, talvez estivesse bêbado, e a cada passo que dava deixava um
rastro de lama. Partiam em lados opostos, até se perderem na multidão e caos
que é São Paulo. E que caos é!
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