quinta-feira, 22 de junho de 2017

Perda do Relógio



Não sei o certo um nome para culpar a terrível perda. Tentei Jaime, Daniel, Sara, nenhum bateu na porta de meu escritório para reclamar a respeito do acontecido. Tentei a velha Remington, mas a velha senhora só sabe datilografar.

Necessito de um culpado...

Na euforia literária de parecer um daqueles grandes escritores do Modernismo, o relógio enche a taça rachada com o melhor dos piores vinhos de botequim. Pede licença a todas as obras publicadas em mesas de bar e vira tudo de uma vez, cuidando-se para não cortar os finos ponteiros com o pedaço que falta na taça, agora suja com a quase-inexistente espuma da bebida fermentada.

Coisa de cinco minutos. O relógio bambeia na cadeira, esbarra no digital que bebe um refinado espumante. Tenta apressadamente pedir desculpas, mas só sabe apontar que horas são- e nem isso conseguia fazer.
(São 22 ou 75 horas do noite-dia?)

O relógio decide tomar um ar do lado de fora do botequim. Tenta se equilibrar pelas duas finas tiras de couro que usa para se fixar no pulso alheio. Tudo o que consegue é uma sequência de zigue-zagues tonteante.

Passou em frente o metrô Vila Mariana, mas decidiu não entrar. A viagem poderia enjoá-lo e botar os números para fora. Ficou observando os que passavam. Como eram diferentes. Usavam roupas, pelos, seios, ódio, pessoas, barba, sapatos cafonas, roupas transparentes, alianças, desenhos pelo corpo com significados, jornal embaixo do braço com a página de signos rabiscada em confusas contas de matemática e coordenadas geográficas.

O não-sóbrio relógio se divertia com todo aquele espetáculo de horrores, como ria. Não se aguentou, cambaleou para escada e vomitou os numerais ímpares. Agora só servia para quem fosse supersticioso... que pena.

O dia estava perto de chegar. O ponteiro dos minutos pesava a cada movimento - e não era por causa do fuso horário.

No fim da escada, algo chamou-lhe a atenção. A cada segundo um barulho familiar. Era um tic para lá, tac para cá e o barulho aumentava a cada segundo.

Atordoado, mas com um resquício de consciência, o relógio se levanta da escada. Que imagem era aquela...

Segurando no corrimão, um relógio com os braços nus, decote à altura, rosto iluminado, com lantejoulas de valor pregadas nas bordas. Talvez era esse o jeito de um relógio seduzir alguém, pois o nosso amigo fermentado aparentava grande excitação.

Mas como um objeto indicativo de horas também pode sentir o desespero, a ilusão, o pavor em amar alguém? Parecia ser, de fato, a criação mais bem criada pelo homem. Infelizmente, com um defeito conhecido há tempos e outras histórias improvisadas: a cópia humana.

O relógio de pulso supersticioso, tenta levantar, mas tomba no áspero degrau. Enfia na cabeça que deve persistir. Após mais três, consegue permanecer semi-ereto. Inicia sua descida.

Observa atentamente a placa que diz para manter-se com as mãos no corredor e permanecer à direita. Murmura algo semelhante a um palavrão inventado na hora. Como pode manter as mãos se só possui duas finas tiras de couro que nem se dão o crédito de serem nomeadas mãos?

Passo, tropeço, passo, tropeço, passo, tropeço, tropeço, tropeço, tropeço, chão...

Espatifado no piso emborrachado. Tenta levantar seu corpo, mas ali resta somente cacos. Pede ajuda para o outro relógio. Sem resposta. Teria sido uma miragem alcoólica? Talvez...

Passa a não sentir o corpo, perde completamente seus ponteiros. De nada servia.

O Tic Tac ficou paralisado em Tac. Pela primeira vez na história, um relógio não saberia informar as horas ao ser consultado.

Silêncio, passos...

Consegue identificar passos se aproximando. Alguém estava atrasado para o serviço. Que horas seriam? 5h30? 6h00?

Talvez esse alguém poderia socorrer o nosso pseudo-protagonista. Passos mais próximos, seguidos de um silêncio utópico em uma cidade como São Paulo.

Agora, salve-me - fez uma reza de bebum. Sente então algo levantando-o. O chão emborrachado frio dava lugar a um piso quente e macio. Como se estivesse na palma de uma mão humana.

Na indecisão de ser usado ou socorrido, o relógio variava suas ideias, repetindo coisas sem nexo. Salve-me, repetiu.

Num rápido momento, as mãos acolhedoras e quentes deram lugar a um lugar frio e apertado. O relógio cada vez mais ia ficando sem espaço, cada vez mais sem vida. Um, dois, três segundos a mais. Foi parar na lixeira mais próxima que Rogério encontrou, afinal, aqueles cacos de vidro espalhados pelo chão poderiam machucar alguém, assim como todo o resto do trambolho. Rogério zelou pelo bem-estar dos muitos que passam pelos finos corredores do Metrô.

Desde então, o relógio nunca mais foi visto. Perguntei discretamente a algumas pessoas da cidade, mas ninguém se importa com um relógio-bêbado-espatifado-perdido.
Se nem ele se importava consigo, respondeu uma senhora de 67 anos.

Continuo na fervorosa busca.





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