Ninguém
ficou sabendo, muito menos eu. Um dia, tudo está uma monotonia. Noutro dia, uma
carta bate silenciosamente a porta de meu apartamento. Uma carta muito mal
elaborada, selo de revista de sábado, fita toda torta, fazendo com que qualquer
um pudesse ler o que estava escrito dentro dela. Para a sorte de quem escreveu,
a caligrafia impossibilitou este ato. Abri cautelosamente a parte que ainda
estava fechada. Coloquei a xícara de café na mesinha da sala, torcendo para que
aquele líquido preto não esfriasse rapidamente. De frio já não basta algumas
pessoas.
De
tantas histórias que me enviavam por correio, aquela foi a que causou uma forte
insônia em mim. Cada parágrafo parecia desaparecer e reaparecer em meu
consciente, inconsciente, psique e outros nomes que fingi aprender na faculdade
de Psicologia. Pensando bem, nem minhas antigas consultas estou dando. O
consultório no andar de baixo permanece igual a minha pessoa: vazio e
empoeirado. Nenhuma daquelas histórias fizeram com que eu algum dia reabra
aquela espelunca, exceto a última que recebi. Uma menina de cabelos
curtíssimos, fumante, anorexa, olheiras no lugar dos olhos escreveu uma carta
pedindo que alguém a ouvisse. Uma menina chamada Marcela.
Desci
até o meu consultório para ver como estavam as coisas. Acertei sobre o modo
como estavam. No chão, pilhas e pilhas de pedidos de ajuda nunca atendidos.
Envelopes e selos de todos os tipos. Pensei em ler todas aquelas cartas que um
dia foram jogadas em um consultório para que nunca fossem lidas, mas demoraria
cerca de anos para que todas de fato fossem lidas. Engraçado, como podem
existir pessoas tão idiotas por acreditarem que uma pessoa filha da puta pode
resolver com um diálogo e hora marcada. Se pelo menos eu soubesse como se sentem.
Saí
com a mesma roupa de dormir para a rua. Na mão, a xícara de café que esfriou.
No bolso, a carta de Marcela. Seria
impossível encontrar essa mulher em uma cidade tão grande como São Paulo. Para
a minha sorte, parte da carta continha uma série de passos para chegar até ela.
Eram cerca de três passos e um extra caso mesmo assim eu não a encontrasse.
-Primeiro passo: procurar pelo coelho de
chocolate
Um
simples endereço levou-me até um bar na Vila Guilherme. Local não muito
agradável, mal frequentado. A placa dizia o nome do bar. Rainha de copas. Uma última palavra com a consciência para saber se
valia a pena entrar naquele muquifo por causa de uma menina chamada Marcela. Entrei. A visão não foi a
melhor que tive. Corpos caídos. Corpos sem vida e abertos. Não gritei. Ver
cérebros na faculdade não era muito diferente do que corpos fétidos. Caminhei
até o balcão e encontrei o suposto dono do bar, morto, com um coelho de
chocolate pela metade na mão. Que modo mais idiota de morrer. Sua alma deveria
estar por aí, zombeteando e lamentando-se por não ter morrido com um tiro no
peito. Concentrei minha atenção para o que restava do primeiro passo. Caso tenha encontrado o coelho de
chocolate, você já pode ir para o segundo passo.
- Segundo passo: falar com o estuprador do Theatro Municipal.
Não
demorou muito para chegar à República. As ruas com o cheiro dos moradores de rua.
Barracos sobre barracos. Olhos que olhavam com desejo pelo meu corpo. Pelos
arredores, pessoas sendo esfaqueadas e roubadas. Um dia normal no centro de São Paulo. Fico de frente para o Theatro
Municipal. Era noite de espetáculo. Como uma presa, lanço-me para os leões.
Tiro a roupa, esperando pelo conhecido estuprador, que não chega. Sobre o meu
corpo, somente estupradores amadores, nada de profissionalismo. Visto-me e vou
para as costas do Theatro. No chão, repousa um homem de aproximadamente 43
anos. Estava gelado, como os homens do bar. Na boca, seu instrumento de prazer.
Corpo aberto para roedores e vermes fazerem um banquete, Desdobro a carta, que
manda eu prosseguir para o terceiro passo.
-Terceiro passo: falar com o
farmacêutico da Rua Voluntários da Pátria.
Não
foi difícil sair da República e ir
até Santana. O metrô ajudou. Cortei
caminho pela Darzan, até chegar ao
endereço. A farmácia estava fechada, mas um bilhete na parede dizia para entrar
pelas portas do fundo. Contornei a farmácia, até encontrar uma pequena porta de
acesso aberta. Entrei sem bater, não era necessário. As enormes prateleiras de
medicamentos não me assustavam. Segui caminho até os fundos. Era possível ver a
sombra de alguém que provavelmente deveria estar me esperando. Aproximei-me e
vi a silhueta de um homem, sentado em uma cadeira de plástico. Próximo a ele, o
chão estava pintado com sangue. Eu estava frente a um homem com espumas na boca
de tanto medicamento ingerido e corpo aberto para mostrar o que acontecia
quando alguém morre de overdose. Os passos acabavam e nada da menina Marcela. Perto dos joelhos do
farmacêutico morto, um bilhete escrito com sangue. Um quarto e último passo.
-Quarto passo: ler o bilhete escrito no
espelho do quarto 77 do Ed. Palace.
Peguei
o ônibus que tenho costume. O mesmo motorista de sempre abriu a porta para mim.
Desci no mesmo ponto que tenho costume. Caminhei pela mesma rua de sempre.
Cinco minutos de caminhada. Estava de frente com o Ed. Palace. O porteiro foi
gentil como sempre e me entregou mais cartas, que joguei em um vaso de flores
de plástico. Subi até o segundo andar, andei até achar o número 77. Olhei para o número na minha chave
de casa. Era o mesmo. Próximo ao banheiro, um antigo e enorme espelho. Um breve
recado. Atire em quem assassinou todas
aquelas pessoas, pessoas que com palavras e órgãos sexuais foram me
assassinando aos poucos. Faça isso e você saberá quem sou.
No
chão, repousava uma arma. Com o gatilho solto, atirei em meu próprio peito.
Antes de cair, vi no espelho a imagem de uma menina de cabelos curtíssimos,
fumante, anorexa, olheiras no lugar dos olhos, que acabara de atirar no próprio
peito, suicidando-se. Eu era a menina Marcela.