segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O suicídio de Marcela


Ninguém ficou sabendo, muito menos eu. Um dia, tudo está uma monotonia. Noutro dia, uma carta bate silenciosamente a porta de meu apartamento. Uma carta muito mal elaborada, selo de revista de sábado, fita toda torta, fazendo com que qualquer um pudesse ler o que estava escrito dentro dela. Para a sorte de quem escreveu, a caligrafia impossibilitou este ato. Abri cautelosamente a parte que ainda estava fechada. Coloquei a xícara de café na mesinha da sala, torcendo para que aquele líquido preto não esfriasse rapidamente. De frio já não basta algumas pessoas.

De tantas histórias que me enviavam por correio, aquela foi a que causou uma forte insônia em mim. Cada parágrafo parecia desaparecer e reaparecer em meu consciente, inconsciente, psique e outros nomes que fingi aprender na faculdade de Psicologia. Pensando bem, nem minhas antigas consultas estou dando. O consultório no andar de baixo permanece igual a minha pessoa: vazio e empoeirado. Nenhuma daquelas histórias fizeram com que eu algum dia reabra aquela espelunca, exceto a última que recebi. Uma menina de cabelos curtíssimos, fumante, anorexa, olheiras no lugar dos olhos escreveu uma carta pedindo que alguém a ouvisse. Uma menina chamada Marcela.

Desci até o meu consultório para ver como estavam as coisas. Acertei sobre o modo como estavam. No chão, pilhas e pilhas de pedidos de ajuda nunca atendidos. Envelopes e selos de todos os tipos. Pensei em ler todas aquelas cartas que um dia foram jogadas em um consultório para que nunca fossem lidas, mas demoraria cerca de anos para que todas de fato fossem lidas. Engraçado, como podem existir pessoas tão idiotas por acreditarem que uma pessoa filha da puta pode resolver com um diálogo e hora marcada. Se pelo menos eu soubesse como se sentem.

Saí com a mesma roupa de dormir para a rua. Na mão, a xícara de café que esfriou. No bolso, a carta de Marcela. Seria impossível encontrar essa mulher em uma cidade tão grande como São Paulo. Para a minha sorte, parte da carta continha uma série de passos para chegar até ela. Eram cerca de três passos e um extra caso mesmo assim eu não a encontrasse.

-Primeiro passo: procurar pelo coelho de chocolate

Um simples endereço levou-me até um bar na Vila Guilherme. Local não muito agradável, mal frequentado. A placa dizia o nome do bar. Rainha de copas. Uma última palavra com a consciência para saber se valia a pena entrar naquele muquifo por causa de uma menina chamada Marcela. Entrei. A visão não foi a melhor que tive. Corpos caídos. Corpos sem vida e abertos. Não gritei. Ver cérebros na faculdade não era muito diferente do que corpos fétidos. Caminhei até o balcão e encontrei o suposto dono do bar, morto, com um coelho de chocolate pela metade na mão. Que modo mais idiota de morrer. Sua alma deveria estar por aí, zombeteando e lamentando-se por não ter morrido com um tiro no peito. Concentrei minha atenção para o que restava do primeiro passo. Caso tenha encontrado o coelho de chocolate, você já pode ir para o segundo passo.

- Segundo passo:  falar com o estuprador do Theatro Municipal.

Não demorou muito para chegar à República.  As ruas com o cheiro dos moradores de rua. Barracos sobre barracos. Olhos que olhavam com desejo pelo meu corpo. Pelos arredores, pessoas sendo esfaqueadas e roubadas. Um dia normal no centro de São Paulo. Fico de frente para o Theatro Municipal. Era noite de espetáculo. Como uma presa, lanço-me para os leões. Tiro a roupa, esperando pelo conhecido estuprador, que não chega. Sobre o meu corpo, somente estupradores amadores, nada de profissionalismo. Visto-me e vou para as costas do Theatro. No chão, repousa um homem de aproximadamente 43 anos. Estava gelado, como os homens do bar. Na boca, seu instrumento de prazer. Corpo aberto para roedores e vermes fazerem um banquete, Desdobro a carta, que manda eu prosseguir para o terceiro passo.

-Terceiro passo: falar com o farmacêutico da Rua Voluntários da Pátria.

Não foi difícil sair da República e ir até Santana. O metrô ajudou. Cortei caminho pela Darzan, até chegar ao endereço. A farmácia estava fechada, mas um bilhete na parede dizia para entrar pelas portas do fundo. Contornei a farmácia, até encontrar uma pequena porta de acesso aberta. Entrei sem bater, não era necessário. As enormes prateleiras de medicamentos não me assustavam. Segui caminho até os fundos. Era possível ver a sombra de alguém que provavelmente deveria estar me esperando. Aproximei-me e vi a silhueta de um homem, sentado em uma cadeira de plástico. Próximo a ele, o chão estava pintado com sangue. Eu estava frente a um homem com espumas na boca de tanto medicamento ingerido e corpo aberto para mostrar o que acontecia quando alguém morre de overdose. Os passos acabavam e nada da menina Marcela. Perto dos joelhos do farmacêutico morto, um bilhete escrito com sangue. Um quarto e último passo.

-Quarto passo: ler o bilhete escrito no espelho do quarto 77 do Ed. Palace.

Peguei o ônibus que tenho costume. O mesmo motorista de sempre abriu a porta para mim. Desci no mesmo ponto que tenho costume. Caminhei pela mesma rua de sempre. Cinco minutos de caminhada. Estava de frente com o Ed. Palace. O porteiro foi gentil como sempre e me entregou mais cartas, que joguei em um vaso de flores de plástico. Subi até o segundo andar, andei até achar o número 77. Olhei para o número na minha chave de casa. Era o mesmo. Próximo ao banheiro, um antigo e enorme espelho. Um breve recado. Atire em quem assassinou todas aquelas pessoas, pessoas que com palavras e órgãos sexuais foram me assassinando aos poucos. Faça isso e você saberá quem sou.

No chão, repousava uma arma. Com o gatilho solto, atirei em meu próprio peito. Antes de cair, vi no espelho a imagem de uma menina de cabelos curtíssimos, fumante, anorexa, olheiras no lugar dos olhos, que acabara de atirar no próprio peito, suicidando-se. Eu era a menina Marcela.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Nova integrante


Há aqueles que olhavam para aquele garoto com camisa de banda carregar algo na mão direita. Não era uma garrafa de refrigerante, como pensou uma senhora que subia a Timóteo Penteado. Não era um celular de última geração, como pensou um homem que provavelmente pretendia roubar aquele que estivesse marcando bobeira. Não era nada que se passava na cabeça de qualquer pessoa.

Há aqueles que conseguiram de fato ver o que o garoto carregava na mão direita de forma cuidadosa, só não lembravam o nome. A mente humana possui um sério problema em lembrar coisas, principalmente se essas mesmas coisas não são celulares de última geração ou qualquer outro lixo tecnológico. Minha função aqui não é ser crítico. Não dessa vez. Só quero contar sobre um garoto com camisa de banda que carregava um cacto na mão direita. Isso mesmo, um cacto. Pequeno ainda, embalado com um plástico vermelho que já estava todo rasgado por conta dos espinhos de infância.

Há quem diga que não é possível alguém se contentar com pouco. Aquele garoto conseguia. Tinha planejado uma história completa com aquela planta. Espero que seja uma planta, ou que não tenha um nome diferente. REINO PLANTAE. XERÓFITAS. De cheirosa nada possui, presumo. Voltando para o contentamento daquele garoto: sim, era possível. Para os que olhavam por fora, era mais um maluco da cidade. Chego a conclusão de que em todo esse meu tempo vivo nunca vi alguém de fato normal, então por que todos não fazem como aquele garoto e caminha segurando um pequeno cacto com a mão direita enquanto vestem uma camisa de banda?

Há aqueles que afirmam de pés juntos que nunca viram esse garoto na cidade, andando com um estranho objeto na mão direita. Também há aqueles que ao entrarem no ônibus lotado, em plena Terça-Feira, fofocam que o nível de maluquice do garoto ultrapassou todos os limites do mundo, a ponto de dar um nome para um cacto, indo até o Cartório registrá-lo. Há aqueles que dizem que o nome escolhido foi Clarice. Eu sou uma dessas pessoas que afirmam que o nome do cacto que o garoto leva para todo canto na mão direita chama-se Clarice. É um nome simples e muito bonito. E ele de fato adora esse nome, assim como todas as pessoas que encontrei na cidade que também carregam um pequeno cacto na mão direita, usando uma camisa de banda.

( Cactos devem ser regados uma vez na semana )

                                     ( Apenas uma vez )                   

( E eles também podem dar flores )

( Uma perfeita combinação de beleza e brutalidade )
            ( Flores em meio a espinhos )

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Carta para um poste de luz

Oh, senhor! Peço um pouco de luz, para a cabeça voltar a controlar e o coração parar de mandar.
As ruas cheias da Augusta são minha única companhia. Abandonei de vez aquela prosa com excesso de belezas e nesse exato momento tomo um café com a prosa real, estruturada para ser um espelho dessa sociedade falha, e acendo o décimo terceiro charuto do dia.
Não quero ser apenas aquele que é ouvido. Quero ouvir palavras que tocam bem na cicatriz que continua aberta. Quero ser o ouvinte. Mas nada muda. Continuo com as mesmas lamentações e você sempre ouvindo atentamente cada coisa que um homem de 37 anos lamenta-se não ter feito ou vivido.
E as outras cartas que te escrevi continuam em suas mãos, presas com fita durex da mais barata que encontrei na papelaria de casa. Casa, uma senhora que há tempos não visito, por isso não ligue se eu estiver cheirando mal pra cacete. Pensei em voltar, mas algo me impede. Algo que possui nome, RG, CPF, comprovante de residência, tristezas, alegrias.
Passar as noites em um albergue até que não é tão ruim. Lá é lugar para qualquer um que queira algum dia ser livre ou não tenha outra opção. Esta última coisa foi o meu caso. O frio da madrugada é mortífero. Sobe pelos furos não remendados da única roupa que tenho. Para a minha sorte e a de todos, sempre tem alguém com uma barrigudinha para esquentar o corpo e para dividir com os amigos. Não sou chegado a álcool, mas essa é a consequência por novamente ter ouvido aquela porcaria que bombeia sangue.
A tinta da caneta que achei na rua e o pedaço de saco de pão que uso para escrever estão acabando.
Dia desses, indo te encontrar, vi que havia respondido minhas cartas. Diversas respostas na verdade, com letras femininas, masculinas, marcas de batom, cinzas de cigarro.
Fico feliz por haver alguém se importando comigo. Minha próxima carta talvez demorará, mas espero que você não se incomode de ler e responder mais uma.
Acredite, você é o único que se importa comigo.

( Parei de fumar, sinal de que não tenho dinheiro )

( Parei com quase tudo )

( Menos escrever )

( Isso jamais )