quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Mãos de malabares


Ele segue somente a duas cores: verde e vermelho. O amarelo para ele não importa. É a preparação para o seu pequenino-mais-que-minúsculo espetáculo.

Confesso que não sei a quanto tempo a cidade está recepcionando artistas. Não são poucos não. Parei de ler meu jornal por cinco minutos no ônibus e encontrei uma dúzia deles, mas nenhum igual àquele garoto. O seu nome, ninguém sabe. Eles o chamam de Docinho sabe-se lá por que. Talvez seja porque ele sempre abre uma bala de Cosme e Damião que ganhou um saco cheio delas em um daqueles centros espíritas. Nunca fui, mas respeito como qualquer outra igreja.

Concluo que não chamam ele de Docinho por conta das balas de Cosme e Damião. Um dos outros artistas da cidade me contou que é por conta da diabetes, mas ele é muito novo para esse privilégio. Nem tem idade para consultar o clínico geral. Amanhã eu desço um ponto antes para ele mesmo me contar. Aproveitarei a transição das duas cores verde-vermelho, afinal, não se pode interromper a arte.

Deitado na cama, ponta dos dedos formigando, deitado de bruços, barba cobrindo quase todo o meu rosto. Era assim que a minha pessoa se encontrava. Procurei incenso para deixar queimando na sala. Mesmo não tendo religião, abro a minha humilde casa para alguns costumes hindu. O sono foi sucinto. Pareceu que nem viera. É uma noite para se deitar, piscar uma vez e acordar atrasado para o serviço e ter que dividir um cubículo de espaço no 104TRO.

O dia passou normal. As mesmas pessoas, os mesmos objetos, as mesmas pessoas que valem menos que objetos, o mesmo tudo seguido de um profundo nada. No fim da tarde, nem parei para tomar o Cappuccino que é rotina nas minhas tardes. Corri para pegar o 802TRO que estava pronto para sair do terminal. Sentei próximo à janela. Por um instante pensei ter visto um rosto familiar, mas deve ter sido o cansaço tentando se divertir com a minha cara. Vinte minutos depois apertei o botão que acende a placa PARADA SOLICITADA. Como prometido, desci um ponto antes do de costume.

Andei cerca de um quarteirão. Olhei ao redor, ainda esbaforido, até que encontrei o garoto chamado Docinho. Ele estava onde sempre esteve: nas ruas, mostrando a todos o que melhor sabia fazer. Suas mãos de malabares faziam mágicas. Acompanhei tudo de longe, do outro lado da rua, para não desconcentrá-lo. Sentei em uma escada de concreto, como alguém que vai a uma apresentação no teatro. Observei cada detalhe. Quando o sinal fechava, ele corria para pegar seus instrumentos de trabalho. Com gasolina e um fósforo riscado, acendia algumas hastes que lançava para o ar, tentando impressionar ainda mais as pessoas dentro dos automóveis. Era um show rápido e sempre o mesmo, mas ele o fazia com o maior sorriso no rosto. Depois de apresentar, corria de carro em carro. Alguns davam moedas, outros mandavam ir para a escola, outros fechavam as janelas para que o menino de roupas esfarrapadas não incomodasse.

Fiquei o restante da tarde apreciando aquele espetáculo. Quando eram 18h, Docinho começou a recolher suas coisas e ir para casa, se é que ele tinha uma. Pensei em ir falar com aquele garoto. Perguntar por que chamavam ele daquele nome.

Quando eu estava me aproximando, o garoto parou para conversar com uma mulher que o aguardava na esquina. Também não aparentava ter uma boa condição econômica. Ela estendeu a mão e o garoto entregou a ela tudo o que havia conseguido. Deveria ser a mãe dele. Ela parou para contar o dinheiro e depois voltou o olhar para Docinho. Um olhar de raiva. Na rua mesmo, a mulher começou a espancar o garoto, dizendo que ele deveria ganhar mais dinheiro. Depois da surra, a mulher saiu, deixando seu filho todo ensanguentado no chão. Tentei ajudar, mas tudo aquilo tinha sido um choque tremendo. Foi quando entendi o porquê dele ser chamado de Docinho. Seu apelido era a única coisa em sua vida que não era amarga.

Chamei o garoto para tomar um café, mas ele recusou. Fui para a padaria e pedi dois expressos, caso ele aparecesse. Não apareceu.

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