segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Samuel não foi à escola

Samuel não tem vergonha. Tão crescido, tão vivido, bem acabado. Estava de plantão na Amador Bueno, vendendo bala na rua só para encher a barriga e aquecer o corpo com um vinho seco horrível que só ele gosta. Samuel passou a beber comigo, lá naquele fim de mundo de boemia. Bebeu uma, duas vezes. Na terceira, eu já estava cheio do mesmo trago e da mesma dor de cabeça que a ressaca traz. Na terceira vez, Samuel quis uma quarta, uma quinta, até resolver morar no bar.

Não quero me intrometer na vida de ninguém. Cada um possui seu próprio vício. Larguei da bebida para me jogar no cigarro e café. Não sinto mais a ressaca, mas também não sei mais para que serve a cama no meu quarto, de tanta insônia que sinto.

A questão é que o problema da minha vida é um caso a parte. Odeio dizer isso, mas me preocupo muito com Samuel. Já faz um bom tempo que não vai à escola. Não posso mais responder a chamada em seu nome, não dá para ir bem em física por ele. Mas eu sei que o verdadeiro Samuel nunca levou bomba em física e agora estava levando. O Luís estava a um passo de descobrir toda a nossa farsa. Passou trabalho em dupla: eu e Samuel.

Desde a nossa última conversa eu tenho pensado bastante em tudo que faço. Eu sei que não foi justo pegar e te abandonar no meio do coletivo entupido de gente só pata me matar mais um pouco com o cigarro. Eu tento parar de ser assim, Samuel, mas chega um ponto da nossa rotina que qualquer vício é válido para fugir dessa droga que é a nossa semana. Você mesmo sabe como ela é. Segunda e final de semana já são as mesmas coisas.

Fui até a Amador Bueno, comprei aquele vinho seco horrível, perguntei seu nome em cada bar. Você só tem dezessete anos e acredite: isso é muito tempo. Mas não sabe de nada, nós não sabemos de nada. Vivemos até o último suspiro sem saber.

Estou voltando para casa. Hoje não vou para sua casa, Samuel. Tua mão não acredita mais na sua volta. Eu preciso acreditar...

Mesmo que nada dito faça o menor sentido, saiba que estou preocupado de verdade.
Vou deixar o telefone no gancho, caso ligue para mim. Já faz tempo que não durmo mesmo, mais uma noite não faz diferença. Ligue a qualquer hora.

O vinho não é tão ruim como antes, a física não é mais tão embaraçosa. Talvez sejamos parecidos, Samuel. Por isso, não tenha tanta pressa em voltar. No final de tudo, você continua a ser visto, a ser ouvido. E talvez o único desaparecido por aqui seja eu, mas isso já tem tempo e o ser humano possui memória curta. Nesse momento, até mesmo você nem sabe mais quem eu sou. Mesmo assim, ligue. Podemos conversar um pouco sobre algumas coisas em mim que eu detesto e que você adoraria ouvir. Uma delas é que sempre te odiei. A outra é que nem sei se você é real. Mas tenho certeza que nossa conversa será interessante.

( A personagem não possui mais condição de continuar seu diálogo; sai de casa e compra um novo espelho... o antigo quebrou de tanta lamentação em primeira pessoa. Espelho é um bom ouvinte, afirma a personagem... sua única certeza real sobre algo)

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